Enquanto eu me preparava para começar a delinear, de fato, o pensamento que me trouxera até aqui, para discutir a arte de Salvador Dali dedicada à moda, me deparei com uma célebre frase do mesmo que há anos não me caia nas mãos. Seria impossível não celebrar essa redescoberta, usando-a como início e introdução das palavras que darão conta de tornar meu pensamento mais lúcido.
"O Surrealismo é destrutivo, mas ele destrói somente o que acha que limita nossa visão."
- Salvador Dali
Salvador Dali foi um dos principais representantes do Surrealismo, um forte movimento artístico do séc. XX, que se imbuiu da psicanálise de Freud, do marxismo e de diversas referências artísticas para enfatizar o papel do inconsciente na atividade criativa.
Para construir, o surrealismo teve que destruir. O movimento combinou o representativo ao abstrato e o irreal ao inconsciente. A arte surrealista se desapega dos ideais renascentistas de lógica e razão e mostra um mundo de sonhos.
Para muitas mulheres (e para alguns raros homens também. Porque não?!) uma revista de moda mostra tudo aquilo que cabe num ideal de vida. As publicações do mundo fashion trazem aos simples mortais um pedacinho de paraíso: uma vida cheia de dinheiro, cercada de pessoas bonitas e conhecidas, rodas sociais badaladas, última moda, alta costura, peças extremamente caras, objetos de desejo, viagens, vernissages, histórias romanceadas, lugares decorados com perfeição. Sonho.
E foi justamente para a mais aclamada, tradicional, internacionalmente reconhecida e absolutamente trendsetter das publicações, que Salvador Dali criou, entre os anos de 1939 e 1971, quatro estonteantes capas nada convencionais. A revista Vogue foi mais um dos muitos meios de expressão que o inovador artista encontrou para chegar ao público.
Tomado pela desconstrução presente no movimento do Surrealismo, Dali desafiou o tradicional mais uma vez. Mostrou uma Vogue de desconstrução. Não havia naquelas capas modelos esguias, posando inertes em vestidos de cortes perfeitos e joias maravilhosamente desenhadas. As referências permaneciam, o que se diferenciava era a forma como eram vistas.
Para falar sobre as vezes em que Dali e a Vogue se associaram, unindo o melhor da moda ao mais cool da arte, vale uma análise breve de cada uma das publicações.
A primeira das quatro capas – a do ano de 1939 – mostrava duas mulheres com cabeças de plantas e longos vestidos num deserto, ou qualquer coisa que se assemelhe a isso. Joias e uma elegante echarpe estavam presentes na figura da mulher em primeiro plano – a que tinha a cabeça em formato de um buquê de rosas coloridas – enquanto a outra – com uma cabeça que mais parecia um tronco cheio de galhos – segurava sobre si um arco e usava uma echarpe branca e fina enrolada em seu pescoço.
A cena tinha ainda bem ao fundo a carcaça de um grande barco, um terceiro e irreconhecível personagem, um céu turvo e pequenos bichos (ou pedras) no chão de areia.
Pelas sombras da imagem o sol devia estar prestes a se pôr ou a nascer. Levando em conta que no mundo da moda só se vê o sol nascer quando ainda não deu tempo de ir dormir, eu diria que a cena trata de um alucinante e nada convencional fim de tarde. Um alucinante sonho de haute couture.
O título da revista ganha pouco destaque. Ele permanece no topo (bem como acontece regularmente), mas vem menor do que de costume e sem sua tradicional fonte sem recortes.
A segunda capa é datada do ano de 1944 e tem muito mais detalhes do que a primeira. Os personagens presentes são, pelo menos, cinco. No canto esquerdo uma mulher com uma criança, mais atrás um cavaleiro atacando uma pessoa e ainda mais ao fundo, no canto direito, há alguém parecendo trazer algo pesado.
Várias das referências citadas anteriormente fazem parte também dessa obra. As pedras, antes pequenas e com pouco destaque, agora ganham o primeiro plano da cena. O vestido longo ainda permanece, mas, principalmente as echarpes, as flores e os galhos continuam ali mostrando a ligação da arte à moda, mais uma vez.
Dessa vez o título da revista é o principal elemento da imagem. Grande e no topo da página, em nada se parece com a tipografia proposta por anos pela publicação. No entanto, está lá em cima, cumprindo seu papel de mostrar que essa é mais uma capa da Vogue.
As sombras de fim de tarde ainda fazem parte desse quadro. A “novidade” principal fica por conta dos muitos pássaros que voam perto do título da revista, e crescem à medida que chegam mais alto. Dessa vez a cena se passa num descampado, mas não mais longe de toda civilização. O cenário mostra de longe morros e construções – algo que pode ser entendido como uma cidade ou uma pequena aldeia.
A quebra com o que é belo no mundo fashion é ainda mais forte nessa segunda capa. Dali sequer destaca o vestido ou as joias da mulher. Mal se reconhece o movimento e a expressão dela. Seria impossível dizer se o vestido é de alta costura, ou se feito de trapos. A criança que segue essa personagem parece importuná-la, o que quebra o ideal de vida perfeita e absolutamente leve que as mulheres da Vogue representam.
A terceira capa foi criada para uma das edições do ano de 1946 e é, dentre as citadas, a que eu mais encontrei referências ligadas à moda.
Primeiro, a imagem do rosto – facilmente identificável na coluna e no o grande corpo rígido dos cantos da capa – tem traços delineados, finos, nos padrões que a revista impõe.
Depois, está lá em cima, como forma de mostrar que “ainda sou eu, ainda a sua Vogue” o título da revista com sua tradicional fonte fina e bem desenhada.
O terceiro ponto, e talvez o que traduza com mais clareza esse feeling da Vogue, é o fato da capa se tratar de um espelho – não um espelho perfeito, mas algo bem parecido com isso –. O objeto é um símbolo da autoestima, do culto ao belo e de tudo o mais que a revista tem como própria filosofia.
As joias ainda estão lá. O espaço que vai indefinidamente ainda permanece, só que dessa vez mais me parece um lago congelado. A natureza se faz ainda mais presente do que nas outras primeiras duas capas. As árvores nascem da terra. Essa terra diferente e frágil que compõe a moldura do “rosto”. E ainda há gelo, neve e frio.
A quarta revista foi, sem dúvidas, a que Dali se fez mais presente. Além de estampar a capa com um autorretrato, a Vogue Francesa de 1971 foi toda editada pelo pintor catalão. A edição tratava exatamente da celebração dos cinquenta anos da publicação, e trazia uma capa dizendo que sua realização era de Salvador Dali.
Havia alguma maneira de negar que ele chegara então ao auge do desejo para as pessoas ligadas à moda? Sou capaz de imaginar o absoluto frisson que suas obras deviam causar nas mulheres que liam a Vogue naquela época. Entre elas, o valor da obra do artista certamente cresceu ainda mais.
Dessa vez a capa estava ainda mais parecida com o usual. O título perfeitamente colocado, bem como sempre vem, no topo da página. A mesma fonte, a data, o “Paris” mostrando de onde era a revista. E ainda – em letras garrafais – linhas de um título que diziam “Número do cinquentenário 1921/1971 realizado por Salvador Dali”.
O Surrealismo se fez presente apenas na imagem do próprio Dali. Não curiosamente ele também tinha flores na cabeça. Trazia nas mãos algo que eu fui incapaz de identificar e tinha um olhar apavorado escondido atrás de uma roupa absolutamente tradicional. Tudo isso desenhado em traços pouco rígidos e bastante turvos.
A maneira como Salvador Dali permitiu, durante toda sua vida, que o seu trabalho fosse divulgado fez dele um dos artistas mais populares do mundo. À primeira estrela pop da pintura não poderia haver referência mais clara de seu pensar e agir do que estampar quatro capas da revista Vogue, ao longo de trinta anos.
As suas obras de pintura são cheias de nostalgia e juventude. Trazem o ar fresco e inédito do mundo fashion, e celebram o envolvimento do pintor com a indústria cultural e a cultura popular.
O valor da publicidade e da autopromoção levou Dali a publicar uma grande quantidade de revistas. Além da Vogue, a Playboy foi só mais um dos exemplos de publicação em que o artista estampou a capa com seu trabalho. Dali foi o primeiro a trabalhar abusando da “self-media”, termo recentemente criado pelo crítico de arte francês Pascal Beausse que se refere aos artistas que utilizam os meios de comunicação e a imprensa para fazer sua arte.
A moda hoje está absolutamente atrelada à arte. Uma grande parte das páginas mensais de todas as Vogues editadas no mundo se referem aos mais variados tipos de expressão artística. Espera-se da arte que cumpra o mesmo papel da moda, se reinvente, traga sempre novidades, novos nomes, novos conceitos, releituras e crie objetos de desejo.
A união das artes com a moda é o que há de mais contemporâneo e fashion. É cultuado pelas classes abastadas, e sonhado pelas que não fazem parte desse universo.