Comprei outro dia A Megera Domada num sebo em Copacabana. Ainda não tinha tido tempo nem de abrir a embalagem. Hoje tirei o livro da sacola e comecei a folhear.
Tinham escritas apenas quatro palavras nele: Para Márcia, do Tom. E datado de 30 de março de 1982.
Dezoito anos se passaram desde então. Quantas vezes será que Márcia abriu esse livro? Será que ela de fato o leu? E será que só ela leu? Ou emprestou o livro?
E Tom? Tom já tinha lido quando presenteou Márcia? Tom e Márcia eram marido e mulher, namorados, amantes, amigos, parentes? Que histórias esse livro tem para contar? Quantas mãos folhearam essas páginas? Quantos dias Márcia chorou lembrando de Tom e do jeito doce com que ele sempre a enchia de presentes simples e representativos?
Márcia era atriz. Em começo de carreira. Tinha muito pouca leitura, e pouco se atinha a Shakespeare, Moliére ou qualquer dos outros autores importantes do teatro. Seu sonho era aparecer na televisão.
Veio do interior ainda moça. Bela como só ela, dona de uma par de olhos verdes penetrantes e de um corpo jovem e bem feito, usava sempre a sedução como principal arma.
Tom era diretor de teatro, mais de vinte anos mais velho que Márcia. Ele tinha a barba grossa e o bigode sempre bem afeitado, os cabelos começavam a cair bem no cocoruto e a barriga já vinha crescendo há alguns bons anos.
Assim que se conheceram Tom se encantou pelo cabelo dela, que dançava sempre livre e lindo. Como ela queria ser atriz, pensava que por ele ser diretor de teatro, poderia ser um grande impulso. Ela se prendeu a ele como um filhote aos pais.
Começaram a se envolver e em menos de três meses já moravam juntos. Ele pagava as contas, ela vivia a se embelezar em salões de manicure e a gastar o dinheiro que ele juntava nas lojas de esquina em Copacabana.
Viviam num pulgueiro, no último andar de um prédio que outrora fora luxuoso e fino. Hoje, alugavam ali quartos para prostitutas e outros profissionais mal remunerados. Ela não se incomodava. Antes um pulgueiro em Copacabana do que voltar para o interior - Não havia mais como se sustentar ali. Todas as suas economias haviam se esvaido nos meses em que procurava de cama em cama uma vaga na novela.
Uma noite tom chegou cansado e bêbado do trabalho. Ele trazia consigo, embrulhado com toda a pompa, o livro novo, de capa divertida e tradução de Millôr Fernandes. Ela agradeceu com um beijo doce, um beijo no rosto. Abriu o embrulho e leu as palavras. Sobre elas, escreveu, sublinhando em seguida, Márcia 1982.
Alguns meses depois Márcia conheceu um ator da novela. Se apaixonou por ele. Se apaixonou por saber que poderia ser ele o seu maior ajudante. Deixou Tom e aboletou-se na casa do galã.
Passada a primeira semana ela foi expulsa a pontapés. Tinha pouco dinheiro, nenhum emprego e não havia lugar para ir.
Chegando a casa de Tom, encontrou dormindo lá uma jovem ainda mais moça, ainda mais bela e com os cabelos ainda mais dançantes. Na sala estavam ainda alguns de seus pertences. Juntou o livro e uma agenda que ele a havia dado, a algumas roupas que ainda se acumulavam no fundo do cesto.
Três dias depois já não podia mais pagar por nenhum hotel. Não tinha amigos no Rio de Janeiro e sequer pensava na possibilidade de voltar para o interior. Passou na porta do sebo e vendeu o livro por uma quantia miserável. Era preciso juntar tudo o que fosse possível. Muito em breve ela sentiria fome.
O livro passou anos nas estantes daquele sebo. Ouviu histórias e músicas em discos de vinil. Passou pelas mãos de apaixonados por literatura, de vendedores, de colecionadores. Ainda assim ninguém quis aquele livro.
Até o dia que eu o encontrei.